Diante da pandemia que assola o mundo hoje, surgem perguntas difíceis. Será que é ação diabólica? O vírus tem origem no mal? Talvez seja apenas obra humana, como pensa a maioria. Para outros, porém, parece apenas “mero acaso”. Creio que nenhuma dessas respostas pode explicar a pandemia que assola o planeta. Nesse cenário vale a pena consultar a sabedoria bíblica. Tenho certeza que iremos aprender muito com os antigos profetas bíblicos.
Entre os profetas de Israel e de Judá, acha-se o breve livro de Naum. Na abertura de sua profecia (1.3), lemos o texto “O SENHOR tem o seu caminho no vendaval e na tempestade, e as nuvens são a poeira dos seus pés”. Essas palavras ecoam desde o juízo divino que caiu sobre Nínive, no século 7 a.C. E elas nos falam de modo particular nestes dias difíceis de crise .
Nem todos percebem que a perspectiva dos profetas de Israel contrasta com a visão do homem contemporâneo, secularizado e humanista. A antiguidade dos tempos bíblicos, como qualquer época da história, estava acostumada a catástrofes de todo tipo, inclusive pestes e desastres naturais. Nesse contexto imprevisível, a revelação bíblica se mostrava distinta da visão de mundo naturalista do paganismo do antigo Crescente Fértil. No paganismo de Canaã a natureza era divinizada. Já no Israel bíblico, o Eterno tudo domina e transcende o mundo. Apesar desse contraste, nos tempos bíblicos ninguém imaginava que o mundo estava sob o poder humano e que as coisas deveriam prosseguir o curso esperado pela razão que “entende as leis do universo”, capaz de dominá-lo com maestria. Esse foco antropocêntrico surge no racionalismo e iluminismo recentes. Os antigos iriam se sentir mais à vontade com algumas ideias de pensadores recentes como Kierkegaard, Heidegger e até Sartre. Eles compreenderiam a tremenda limitação do ser humano, sua impotência diante do mundo “estranho” que os cerca. Conscientes da realidade, os pagãos temiam os desastres naturais, atribuídos a divindades específicas. Baal e Astarote dominavam a fé na cultura cananita. Os homens se imaginavam à mercê dos deuses, que poderiam atingi-los a qualquer momento.
Nesse ambiente, o pensamento bíblico rejeitou a idolatria pagã e destacou o Eterno como verdadeiro e único Deus. Os deuses pagãos eram mera imaginação dos povos. Apesar disso, o homem bíblico nunca atribuiu a elementos não divinos a origem dos fenômenos. Uma leitura atenta do Salmo 29, por exemplo, revelará a apologética contra o baalismo e a ênfase de que o SENHOR é o verdadeiro Deus que domina as tempestades. Pode se constatar que “a voz do SENHOR” do Salmo 29 é o trovão que estronda. De modo geral, na Bíblia, o sofrimento que nos atinge tem origem no próprio Deus e não em outra fonte. De igual modo, no livro de Rute, o sofrimento geral (fome) e, também, a dor específica (de Noemi) vêm do próprio SENHOR.
Uma perspectiva teísta da realidade não apresenta alternativa. É impossível imaginar que um desastre natural, como epidemias ou terremotos não tenham a ver com o próprio Deus. A natureza não opera independentemente da ação divina. A ideia equivocada de que os homens podem exigir do Criador e que Deus deve ser culpado pela dor que lhes é causada marca a revolta dos ateus e agnósticos que veem a vida “debaixo do sol”, na linguagem do Eclesiastes. Por isso, em última instância, com as Escrituras, afirmamos que o Deus soberano tem o controle de tudo é o “responsável” pelos desastres naturais, pois tudo vem de Deus.
Se pudéssemos conversar com o homem bíblico do Israel antigo, talvez não fosse tão difícil entender o seu raciocínio. Ele saberia, por exemplo, que Deus tinha sido responsável de modo direto por intervenções meteorológicas que causaram muitas mortes, como foi o caso do Dilúvio e da abertura do mar Vermelho. Além disso, ele entenderia facilmente também que Deus é quem tira a vida de todos os que falecem (Dt 32.39 – “eu mato, e eu faço viver”). O SENHOR dá a vida e a tira. Em certas ocasiões, ele convoca algumas de suas criaturas um pouco antes do momento por elas esperado. O homem que mata é assassino, pois não tem o direito de tirar aquilo que nunca concedeu. Mas este não é o caso do soberano Deus. Por isso, nossos avós gostavam de dizer que um falecido havia sido “recolhido”. O homem bíblico também costumava entender que tais atos divinos poderiam ser um lembrete ao ser humano de sua fragilidade e de sua pecaminosidade. A leitura do livro de Salmos revela isso com frequência (veja os salmos 30 e 130. A relação sofrimento e pecado associada à fragilidade era comum. A literatura bíblica até cunhou o termo ’enosh para falar do homem como frágil. O termo distingue-se de ’ish e de ’adam, e define o homem em sua distinção com relação ao divino.
Por isso, se o homem bíblico visse nossa sociedade perversa e distante de Deus, com todas as nossas mazelas contemporâneas, ele consideraria a possibilidade de uma intervenção divina em nosso tempo para refrear os desmandos humanos na Terra. E, diante da escatologia neotestamentária (Mt 24, Lc 21) seria esperável até enfrentar desastres, inclusive epidemias.
Todavia, o mais surpreendente é que, numa perspectiva dialética, os textos bíblicos ao mesmo tempo nos ensinam a sentir profundamente o sofrimento e a chorar em meio à tribulação com toda a dor. O homem bíblico lidava com a realidade de que o Deus soberano, com o direito de julgar, tem, ao mesmo tempo, amor por suas criaturas e sofre com elas e por elas, por causa de sua misericórdia. Na verdade, o israelita antigo talvez até pudesse fazer uma outra pergunta: Por que, diante de tanta injustiça, o Deus onipotente e justo não executa o seu juízo sempre? Por causa da sua misericórdia! É muito possível que no profundo do coração ele se consolasse com as palavras do salmista: “a misericórdia do SENHOR dura para sempre” (Sl 136). Que bom! É um consolo! É confortante! Parece que Deus resolveu esperar um pouco mais! Diante dessa interrupção de rotina, muitas vezes egocêntrica, irrefletida e irresponsável, creio que ainda há chance de arrependimento e retorno ao Senhor de toda sabedoria e soberania diante da panpidemia! Afinal, Deus usa aquilo que nos parece mal e dolorido, aquilo que chega como tempestade e vendaval, para fins bons, para a sua glória.
Quando chegamos ao Novo Testamento e vemos o ensino de Jesus no Sermão do Monte, encontramos diretrizes importantes para como deve funcionar essa misericórdia divina na vida dos que estão em aliança com o Senhor. A missão envolve a proclamação da verdade, do juízo, e também do perdão, da salvação, da misericórdia divina manifesta de modo concreto.
Jesus vai falar dos que têm “fome e sede de justiça” (Mt 5.6). Quando se entende o contexto, vê-se que a palavra justiça envolvia três aspectos: legal, moral e social. O sentido moral tinha a ver com o conformar-se à lei divina, não transgredir, por exemplo, os dez mandamentos. Essa dimensão moral estava ligada à esfera legal da sociedade, ou seja, a ética social adequada, de origem mosaica. Por isso, Mateus traz cinco grandes discursos para nos lembrar dos cinco livros da Torá, e as bem-aventuranças são como as palavras da Torá ditas no Monte Sinai. Jesus é uma espécie de novo Moisés. Por isso, o aspecto legal e moral, essa justiça, é tão valioso. Mas, essa justiça se desdobrava em misericórdia e acolhimento também. Por isso, diferente do mundo antigo, os textos do Israel antigo eram únicos em se preocupar com viúvas, órfãos, pobres e necessitados, com enfoque peculiar de uma justiça de Deus contra a opressão, a maldade, comum nas potências do mundo antigo, como o Egito, a Babilônia e o mundo romano, da época de Jesus onde 60% da população era escrava. Assim, há necessidade de justiça no mundo. Justiça por causa da maldade e opressão. Justiça para que a maneira como se organiza a sociedade submeta-se aos mandamentos de Deus. A Torá tem 613 mandamentos. Os 10 mandamentos resumem a Lei, e Jesus vai dizer que amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo resume a essência de todos esses mandamentos. Em função dessa perspectiva, qual é a grande dimensão que envolve a pessoa que passa a seguir a Jesus? Elas vivem isso na prática.
Os bem-aventurados são pessoas que, em vez de terem sede de poder, de sonharem que serão famosas, de desejarem o que os gentios querem, essas pessoas não aceitam ver crianças morrendo, revoltam-se quando ouvem falar de crimes horríveis. Elas têm o coração machucado quando veem a desordem e a dor no mundo. Por isso a fome e a sede, o que lhes toma o coração, anseiam o dia em que a justiça vai chegar. É uma santa revolta contra o mal. São pessoas mais tristes, aborrecidas, e são marcadas pelo choro do reino. Possuem uma santa revolta que se traduz numa fome intensa de querer ver justiça na sua própria vida. Elas descobrem que o problema do mundo também está nelas. Sabem como é difícil ter paz quando levamos desvantagem num negócio. Sabem como é difícil perdoar quando somos machucados e ofendidos. E essas pessoas que vão estar alinhadas com o Reino, são pessoas cuja vitória do Reino se dá no seu interior, e elas sonham com o dia quando não mais pecarão contra Deus. Elas sabem que um dia as imperfeições serão vencidas. Sonham com o alvorecer do Reino, quando a justiça será vencedora ao cenário à sua volta e em sua própria vida.
Jesus fala em misericórdia (v.7). A palavra evoca a graça de Deus. É agir de uma maneira sensível com os mais frágeis. O nosso mundo, a sociedade que funciona como Roma, é o mundo dos vencedores. Qualquer pessoa que tropeçou no caminho, será atropelada e não terá chance. Os antigos germânicos, quando descobriam que seus filhos poderiam ter algum problema, eles os matavam ou os abandonavam. O nosso mundo funciona assim! Se alguém tem dificuldades na vida, a própria sociedade abandona essas pessoas, apontando-lhes culpa. A misericórdia está alinhada com a graça de Deus, com o amor incondicional de Deus. Foi assim que Deus procurou Israel. Foi para fazer aliança, para estabelecer uma relação de parceria por sua própria decisão. Ele enfatiza que a relação com Israel não foi por serem bom povo. Esse mesmo Deus que se manifesta em Cristo Jesus com graça, nos procura, e esse amor de Cristo que nos constrange é a marca da maneira como Deus age. Quando uma pessoa passa a fazer parte do Reino, reconhecendo sua limitação, seu pecado, ela começa a sonhar com a justiça. Essa pessoa atingida pelo Reino recebe a misericórdia de Deus, pois não será punida como deveria. A misericórdia é o contraponto da graça. Graça é receber aquilo que não merecemos, e misericórdia é não receber o que merecemos. Quando esse amor incondicional de Deus nos alcança somos atingidos pela misericórdia de Deus e o nosso coração muda. E quem são os misericordiosos? São aqueles que foram tratados por Deus com tal amor que agora tratam as outras pessoas assim também. É a pessoa que sabe que o “fulano” errou, que sabe que pensando de modo objetivo ele não merece mais nada, mas como Deus o trata de uma maneira tão graciosa, essa pessoa crê numa outra chance para aquele que agora é alvo da misericórdia de Deus. Se excluirmos a misericórdia, o mundo seria destruído. Só existe chance de perdão, de restauração, de reconstrução da realidade por causa da misericórdia e o amor de Deus. Por isso, na hora da dor na pandemia, a igreja deve mostrar essa misericórdia, e não apenas reforçar discursos apocalípticos. Deve fazer “brilhar sua luz diante dos homens com suas obras para que o Pai seja glorificado” (Mt. 5.16)
Para Reflexão e Discussão
- Você já viu um debate teológico sobre o caráter de Deus surgir em sua comunidade durante esta crise? Você experimentou pessoalmente alguma luta teológica?
- Como a justiça, misericórdia e graça de Deus se tornaram evidentes em sua vida?
- Como podemos demonstrar na prática a misericórdia de Deus neste momento desafiador?